Monday, October 15, 2007



As azedas da Liberdade

A nossa liberdade era como as azedas. E quem não as conhece povoando os pastos no início da Primavera? Assim éramos nós, quando as horas não tinham minutos, e corríamos bebendo a brisa. De um lado os altos muros de lava, colhida pedra a pedra, montados como um puzzle, para adornar a tela e dividir a posse do senhorio; do outro, o mar verde de seda beijado pelo fôlego quente da tarde. Quando a Maria de Jesus dava o toque de partida, o coração galopava como um cavalo selvagem. Era a aventura de uma vida. Desobedecer e tomar os atalhos. Perdermo-nos na euforia de uma aventura.
Ao lado da Escola dos Centenários ficavam a perder de vista os pastos, até ao mar. Lá ao fundo sabíamos que a Canada Maria do Céu nos esperava, tranquila, com o alambique do Xico Brandão, as selhas e pipas, as tranças de tabaco, os figos de figueira, as cabras de “vavô”, e o aroma das fornalhas recebendo ao final da tarde os frutos da terra.
A Maria do Céu era o nosso destino. O fim da correria louca, para não chegarmos a casa fora do tempo, e apanhar uma vassourada injusta. Os rapazes brincavam à bola ou com o aro de ferro das pipas, descalços com uma côdea de pão de milho no canto da boca.
E as azedas selvagens.
Com o coração na boca parávamos para as apanhar e chupar-lhes o caule, até ficarem em nada. Não sei porquê tal ritual de infância. Sugar o sangue das azedas. O suco atroz, ácido sorvido em ritual de passagem. Acreditei que a Canada estava mesmo ali. Deixei de sentir as pernas. Voámos de excitação e medo. E se nos perdêssemos? E se a Maria de Jesus se enganasse nas cordenadas? E se as azedas fossem veneno? E se a noite chegasse e nos tomasse? Mas a Canada Maria do Céu descobriu-se aos poucos. A doçura branca da cal das casas, o miar do gato, as cuecas do tio Xico no estendal. Estava salva. E para sempre as azedas…
Humberta Araújo

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