Friday, February 15, 2008

No interior do seio sagrado


Mariana vive no interior da ilha. A décima. Só se desloca à cidade pelas festas do Senhor Santo Cristo. Os cinco filhos que teve apenas conheceram a parteira. Médico só na vila e mesmo assim só em tempo de emergências, que felizmente não têm batido à porta. Achaques e moléstias são curadas com mezinhas e remédios caseiros. Nada de mais para sobressaltar a família. Assim se vive numa calma desconcertada, pois paira sobre a cabeça de Mariana o medo daquele peito. Que Deus a proteja da sina da mãe, da avó e de duas tias. Porém, no silêncio das palavras mudas, Mariana ouve o trepar calado do sangue a alimentar a herança. Que nada se veja e que nada se diga daquele mal desentendido pelas gentes, que se acomoda no seu corpo, como a água da chuva que o pasto sorve. Mariana esconde o que ferozmente lhe consome o peito. Não vá a vizinha, a rua, a freguesia deitar-lhe aquele olhar , o mesmo a que se acostumou a reconhecer nas caras das gentes da rua, depositado depois no seu corpo, quando de mãos dadas com a mãe acompanhou o féretro da avó e, depois já mulher, o de sua mãe.
Na terra do analfabetismo e do esquecimento, o tumor galgava o corpo da mulher, semeando a ignomínia como o mar em tempo de tempestade. Na terra, a doença “salve-seja” mais do que a certeza da dor e da morte, trazia consigo o xaile do preconceito. O peito é agora uma chaga rebentada. Já não pode negar, nem a si nem a ninguém, que aquele corpo já não lhe pertence, tomado que foi pela peçonha. É tarde demais. Tarde demais para tudo. A pobreza, a ignorância, o medo, a distância fizeram um pacto com a “salve-seja” e nada mais lhe resta do que dizer adeus aos poucos. Adeus aos horizontes azuis, ao nascer do sol, aos filhos e ao marido, ao álbum das fotografias – poucas – pois naquele tempo eram poucos os retratos.
Viveu o medo de deixar as mãos e os dedos percorrer o peito à procura do “caroço". O medo de descobrir qualquer coisa de “ruím” e fechar-se no anonimato de um incómodo, sem um abraço de esperança. Lembra as mulheres que o tumor consumiu e que ela herdou. Lembra o sangue feminino que corre no seu corpo e no seu nome. Vive o preconceito e o silêncio.
Assim morreram muitas mães e avós. Muitas amigas e filhas. Já não é preciso o silêncio. A solidariedade e a ciência já conquistaram os muros do medo. Mesmo assim, para muitas mulheres falta ainda a informação e os meios para que de uma vez por todas conquistem com orgulho o seio feminino.

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